A lista!
Acaba de sair uma lista promovida pelo jornalista Walter Porto, com a colaboração de mais de cem jurados, que elegeu os melhores livros brasileiros de literatura do século 21. Aqui, o primeiro porém: apesar da chamada, é preciso atentar que a lista se refere apenas ao primeiro quartel do século. E já adiciono outro porém: é uma lista viciada. Mas vamos a ela.
Entre as obras elencadas, 68% foram editadas pela Companhia das Letras, 8% pela Record, 4% pela Pallas, 1% pela Todavia e outro 1% pela Dublinense. Se levarmos em conta que Alfaguara é um selo da Companhia das Letras, temos 69% dos livros editados por esta editora.
Até aqui, nenhum engano, já que ninguém discorda que Cia. das Letras, Record e Todavia sejam as maiores editoras do país. Ignoraram a Fósforo e a Nós. E acho mesmo que o resultado da Todavia teria sido outro se não tivesse havido nos últimos meses o “escândalo” envolvendo seu editor, naquele episódio dos e-mails misóginos. Ou talvez a Todavia não apareça com maior número na lista por ser uma editora jovem, surgida em 2016 – tal como a Fósforo, fundada em 2021 e a Nós, fundada em 2015.
Que essa lista não inclua editoras independentes apesar da Pallas, que assim se denomina, é assunto para mais embaixo. Antes, vamos a mais dados. Antes, um aviso: foram levados em conta, aqui, os estados de origem de cada autora e autor (à exceção de Cristóvão Tezza, que nasceu em Santa Catarina e está há muitos anos no Paraná – e de que tenho conhecimento):
Parece um mapa bem diverso, mas não é. E a resposta para isso talvez esteja no gráfico anterior, que trata das casas editoriais. Mesmo assim, se levarmos em conta somente o estado de origem, vemos que todas as regiões estão apresentadas, mas exclui-se completamente o Centro-Oeste. Da mesma forma, a região Norte aparece com somente o estado do Amazonas, enquanto o Nordeste aparece com Bahia e Pernambuco. A seguir, então, vemos o mapa de onde realmente acontece a literatura brasileira: aquela região que costumo chamar de Sude-Sul: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul.
Continuando a tentativa de compreender as obras eleitas como “as melhores do século”, fui atrás das datas de publicação dos livros. Encontrei isto aqui:
A lista é variada, e apesar dos anos que não existiram, pois deles não restaram obras a serem citadas [a saber: 2004, 2008, 2013 e 2017], parece que o corpo de jurados leu ao menos um livro por ano, à exceção destes quatro citados.
Nenhum ponto até aqui é uma surpresa, mas vejamos que entre gêneros literários os números são de 72% [18] de romance, 16% [4] de contos, 8% [2] de poesia e 4% [1] de ensaio.
Então que não há novidades nesses dados: temos grandes casas editoriais, temos um fluxo maior de autores vindos de determinados estados, temos gêneros de maior predileção em relação a outros. E nem mesmo os prêmios, sempre tão respeitados, ano a ano, fazem diferença na escolha dos jurados: há diversos Prêmio São Paulo, Jabuti, Oceanos e Biblioteca Nacional que deveriam, poderiam figurar nessa lista. E por que não figuram?
Meu olhar não se volta para o organizador da brincadeira [porque não passa de uma brincadeira de mau gosto], não se volta para as editoras que publicaram autoras e autores dos vinte e cinco livros mais “importantes”, nem mesmo para de onde vêm essas pessoas. A essa altura, só consigo olhar para os jurados.
Pois se é o mercado quem dita nossos costumes, por que não ditaria também aquilo que lemos? [Aqui, faço um adendo: certa feita, um autor que consta na lista postou uma foto, deslumbrado, dizendo que tinha muito orgulho de seu livro estar na quarta capa de uma importante revista de circulação nacional. Ele não disse, porque não quis dizer, que seu livro estava ali por um bom preço pago pela editora que o havia publicado. Coisas que acontecem].
Se o mercado dita nossos costumes e nossas leituras, então não havia por que convidar mais de uma centena de pessoas para eleger “os melhores livros do século”; bastava ter chupado a listas dos mais vendidos da Publish News, por exemplo. “Vejam os mais vendidos, vejam o que nos ordenam que leiamos”. É só isso que explica alguns títulos aparecerem tão alto no ranking.
E tem mais: não é novidade para ninguém a importância que têm tido as editoras independentes na constituição do panorama editorial brasileiro. São editoras com autoras e autores premiados, com livros que ultrapassam a bolha do baixo mercado e que volta e meia precisam se virar para imprimir mais livros, às pressas, porque algumas edições já estão às vésperas de escassear quando livros são premiados ou simplesmente são citados em podcasts e programas de entrevista.
Mas isso nem a intelligentsia, nem a classe artística quer muito saber. E eu tenho um exemplo disso: quando veio à tona a questão dos e-mails misóginos, uma quase totalidade de autoras e autores que conheço fez silêncio, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Agora, diante dessa lista, e dos mea-culpa do júri [que desde ontem está divulgando os livros que escolheram, dizendo que não foi bem assim, camarada, veja só], não espero ver outra coisa que o silêncio amplo e irrestrito de quem está por cima – porque não quer cair –, e de quem está por baixo.
Porque o mercado também faz isso: nos exige desejar estar no lugar de quem nos pisoteia. Sem crítica, sem cara feia, sorrisão aberto no rosto, abraços de cumplicidade e um único desejo: ser também convidado para escrever uma lista. O grande problema? Será a mesma, mesmíssima lista. Porque sempre é, porque sempre foi.
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É caça-clique, Marcelo. Um jeito de puxar leitura pra um caderno cultural infelizmente fadado á irrelevância: ninguém mais lê a Ilustríssima.
A coisa do centro-oeste muito me doeu