Estou às voltas de começar meu sexto romance. Um final, de certa forma, para o que foi começado com Paraízo-Paraguay e com Três porcos. Há de se chamar Linha de rio, se tudo der certo, e se pretende uma autoficção histórica – essa parte dedicada a quem gosta de engavetar o texto literário dentro de limites, enfim.
Por muito tempo, lidei com os vinte, talvez dez minutos finais de meu velho enquanto ele agonizava e se recusava a morrer, talvez por não ter forças para o grande e último salto que a vida nos exige. Em looping, pela maioria das horas do dia, eu revivia aquelas cenas: o quarto com apenas nós dois, a respiração ofegante, o olhar perdido de morfina. O salto, o fim, minha incredulidade: É isto? Tive que escrever um livro e gastar horas de terapia no assunto para hoje aquelas imagens serem no mínimo curiosas. Já não me assaltam mais. Já não me paralisam. Tampouco as visito assim, como quem não quer nada. Estão aqui comigo, permanecerão comigo, mas estamos de bem: elas lá, eu cá.
Eu venho de uma cidade acostumada a desastres naturais – e essa sentença é terrível de escrever –, mas tão acostumada que não é incomum que depois de uma enxurrada, de uma enchente, logo a cidade volte a viver como se nada tivesse acontecido, mesmo que as marcas deixadas pela chuva, mesmo que os estragos nas vidas e nas cabeças das pessoas sejam incuráveis. Como uma mãe que ignora a dor do filho e diz apenas Passou, para de chorar!, aquela cidade se reinventa nas formas de lidar com suas tragédias. Digo isso porque eu daquelas pessoas que acompanha tragédias sempre que possível, e não seria diferente com Milton, o furacão que atravessou a Flórida.
Eu já disse de onde eu venho? Pois então: apesar de aquela jornalista ter escrito aquele texto no mínimo cretino sobre ter avistado uma saudação nazista em Santa Catarina – em tempo: há nazis aqui, sim, e não nos orgulhamos disso, mas não era o caso daquela coluna –, até que não vamos tão mal no quesito fascismo brasileiro contemporâneo. Basta ver o quanto mata a PM da Bahia, basta ver que o estado de São Paulo é um rincão do PL, e por aí vai. Mas nós temos uma característica própria e linda: somos extremamente cafonas.
Não adianta, que cafonice não é título que se conquiste na academia. Temos uma deputada que veste uma coroa de flores na cabeça (cafonérrima), temos as fantasias de alemão que se vestem na Oktoberfest (talvez o berço da cafonice) e temos nossas tragédias, que não são engraçadas, mas dão jeito de mostrar o quão cafonas somos. Então se segurem, que aí vem um trecho retirado do site do governo do estado a respeito do furacão Catarina, que atingiu o sul de Santa Catarina em 2004:
O nome do furacão
Na América Central e na América do Norte, o fenômeno furacão é algo frequente, por isso os norte-americanos seguem uma sequência e escala com regras para nomear tempestades.
Essas regras, na época, não valiam por aqui. Por isso, dar nome ao fenômeno que atingiria o Sul catarinense em março de 2004 ficou a cargo da equipe de meteorologia da Epagri/Ciram que nomeou o Catarina.
A lista de possíveis nomes foi variada. Mas como a trajetória do furacão seguiria o Litoral de Santa Catarina, a equipe limitou as possibilidades a duas: Anita ou Catarina.
Não havia regras, mas o furacão precisava ter nome de mulher. Então ou Catarina, em referência à santa, ou Anita, em referência à, como dizem aqui, “heroína de dois mundos”, Anita Garibaldi. Se tivessem dado o nome da professora Antonieta de Barros – a terceira escolha, suponho –, o furacão ainda seria um furacão. A questão é que houve um debate para escolher o nome do bicho. Nada por ser mais desesperador do que esse excesso de cafonice.
Mas em Blumenau, a cidade onde cresci, as desgraças medem-se por metros e por anos. A enchente de 1983 foi maior ou menor que a de 1984? Em 2008 teve enchente ou só teve deslizamento? Quantos foram os mortos das enxurradas de 1990? Quanto o rio precisa subir pra chegar aqui? Quanta chuva precisa cair lá nos morros pra nossa casa ser levada embora?
Ao dar nome para uma desgraça como o Milton, parece que se está humanizando a natureza e fazendo o enfrentamento mais verdadeiro. Mas quando se lida com datas e números, é muito fácil se enganar, errar os cálculos dos anos, dos metros de nível do rio, dos milímetros cúbicos de chuva acumulada, tudo que se precisa saber para viver numa cidade que funciona como calha para água que desce em direção ao mar.
Da cafonice e da cretinice nunca se escapa. Mas eu queria mesmo era dizer que, tendo parado de escrever Linha de rio para trabalhar em outras coisas, me surgiu essa dúvida de como se dá nome aos furacões. E porque as demais tragédias seguem inominadas. Talvez a razão esteja no esquecimento, afinal é mais fácil esquecer uma data do que esquecer um nome. Ou talvez se trate de bem outra coisa que eu ainda preciso descobrir para continuar a escrever meu livro.
Como diz uma amiga minha, o cafona nunca sai de moda.
de fato, pecamos muito em cafonice. ótimo texto!