Literatura é sobre enxergar
Ao ler “O fim do homem soviético”, de Svetlana Aleksiévitch, me deparo inicialmente com aquele momento em que a União Soviética vê o seu fim, dando início às independências dos países. Ao descer a bandeira da URSS, as pessoas viram subir a bandeira russa. Isso é História. Mas, por acaso, o que não seriam os olhares daquelas duas mulheres que são contempladas na primeira parte do livro? Ielena Iúriuevna e Anna Ilínitchna por acaso não são História também?
Explico. Ielena trabalhava para o partido comunista russo, sendo terceira secretária do partido. Cidadã exemplar. Vivia para o comunismo, e, como muitos, viu o modelo soviético cair diante de si como um boneco de posto que, de repente, se descobre sem ar. Já Anna, ela também seguia o modelo soviético, mas a contragosto. Em casa, à noite, ouvia músicas proibidas pelo regime, recebia livros proibidos, conversava conversas proibidas. Cada uma delas viu de maneira muito diferente o golpe contra Gorbachev, a sua reentrada em Moscou e a falência da URSS decretada por ele.
Se Svetlana tivesse contado somente uma dessas histórias, cairia numa mesmice antiga de distribuir panfletos. Soaria preguiçoso. Mas qual não é o tamanho de uma obra que nos coloca ora de um lado, ora de outro de um muro (de Berlim?) que já não existe? Somos obrigados a concordar com Ielena, a comunista de carteirinha – de verdade –, que a queda daquela “civilização” (é assim que ela se refere à União Soviética), o que trouxe foi fome e desgraça. Mas Anna, a subversiva, revela outras quantas desgraças de se viver no regime e como se livraram delas ao verem surgir uma Rússia independente.
Eu não tinha ideia dessas coisas quando publiquei meus dois livros históricos. Em Paraízo-Paraguay, eu queria contar uma anti-história da imigração alemã no sul do Brasil. Não queria um protagonista heroico, que viesse da Alemanha com dotes ou conhecimentos muitos para criar uma “civilização” (é assim que dizem por aqui) nova neste país. Por isso ele é como é: analfabeto, ladrão, pilantra, falcatrua e malvado. No entanto – e aí veio a minha desgraça –, eu dei jeito de humanizar este homem e continuar contando sua história a partir de sua descendência.
As pessoas de fora do sul, ao lerem Paraízo, me escreveram recados diversos. Mas o mais contundente, sem dúvida, foi um “Eu não tinha ideia de que existisse um Brasil assim”. Isso já faz tempo, então não vou poder dar autoria ao recado. Mas ele me agrediu de uma forma muito própria: as pessoas falam daqui – sobretudo por conta dos resultados eleitorais etc. – mas as pessoas não conhecem aqui. E conheceram um pouco da gênese desse imenso hospício a céu aberto lendo meu livro. Venci. Vencemos.
Quando voltei às questões históricas, escrevi “Deus não dirige o destino dos povos”, um livro que tem em si uma tese sobre o qual foi construído: o nazismo não fez casa aqui, como tanta gente gosta de esbravejar, como fez o integralismo. Não sei se foi a tese – ou as teses, porque há mais de uma – o que fez o livro flopar. Até pensei que se tratasse do tema, afinal quem é que gosta de debater história hoje? Mas talvez eu tenha mesmo errado a mão: discutir o integralismo sem explanar didaticamente do que se tratou o movimento, explicar o que foram os fascismos ibero-americanos e como eles chegaram aqui teria me dado algum trabalho, sem dúvida, mas como eu rejeitei a tarefa, talvez isso tenha custado às pessoas.
Porque há dois erros muito comuns na literatura que se pretende política, vejamos: ou ela é panfletária (fala aos iguais, sem convite; todos já se conhecem, conhecem o discurso, conhecem seus lugares à mesa e falam o que ensaiaram de antemão) ou ela é didática (ensina ao leitor e à leitora uma verdade, ignorando que as verdades costumam ter diversos lados). E nisso a maioria falha. Primeiro, porque os panfletos que recebemos acabam invariavelmente no lixo. Depois, porque se a aula não é realmente muito boa, logo se esquece da lição.
Eu errei em “Deus não dirige…”, acho, pela arrogância dos bitolados. Quero dizer: achei que pudesse escrever sobre alguns momentos da História (1945, 1964, 1989) a partir do meu lugar de modo que a história contada naquele romance pudesse se universalizada (com todas as aspas possíveis) e se tornar uma história do Brasil sob os perigos do integralismo. Erro meu. Porque. Agora. Atenção.
Atenção, mesmo, porque isso aqui pode soar muito, muito mal.
Mas e se em vez de entendermos a ditadura brasileira como o período terrível (que foi, sabemos), como um pouco mais do que isso? Quero dizer: aquelas famílias que nos anos de 1970 que viviam nas cidades do interior, onde a luta armada não era nem conhecida, e que conseguiam fazer o rancho do mês e ainda pagar os crediários de geladeiras e fogões, e ainda as parcelas do BNH para construírem uma casa de alvenaria?
Será possível explicar para essa gente hoje septuagenária que tudo que foi conquistado naquela época foi devido a acordos insalubres no mercado financeiro internacional? Que quando os árabes fecharam a torneira do petróleo, depois da guerra do Yom Kippur, começa a inflação que vai derrubar a ditadura? Que o milagre econômico foi pago com juros (juro!) todos os anos depois, até a chegada do plano real? Eu duvido.
Mas falar sobre quem esteve em combate, sobre quem morreu lutando contra os milicos, sobre quem perdeu seus queridos (um beijo na Juliana Leite) por conta do terrorismo de estado, isso cria diálogo com quem não teve nem ideia de que houve mesmo todas aquelas mortes e toda aquela violência? Duvido também. E não diminuo o poder dessas obras, porque elas nos fazem (a nós, da esquerda) pensar e repensar tudo quanto não fazemos hoje, contra o que não lutamos mais.
Isso me faz lembrar aquela cena pelega, hipócrita, vendida e triste de “Ainda estou aqui”, quando o milico diz à Eunice Paiva do filme que ele não concorda. O sujeito pode ter dito aquilo, Eunice pode ter ouvido aquilo e Marcelo pode ter escrito no livro. Bonito. Interessante. Mas acho sintomático essa fala ter aparecido no filme. E falo com propriedade, porque tenho dois livros licenciados para o cinema, sou amigo do diretor (que admiro pra cacete), e sei como as coisas funcionam: eu cedi os direitos do livro, mas não tenho mais nada a ver com o que se vai fazer com eles. Negócios, essas coisas. Por isso, quando Waltinho opta por manter a fala do milico arrependido, eu não vejo como um respeito ao livro, a Eunice ou sei lá mais quem. Eu vejo como um recado: eu, Waltinho Bilionário, artista só quando quero, mando um salve pra vocês, os esverdeados.
Na verdade, penso que aquele milico merecia um livro só dele: a história do milico que torturava mas não concordava. Quem sabe no futuro.
Agora, voltando ao livro de Svetlana, fica claro que ela mirou o olhar para tudo que era diverso e contraditório. Como se a História fosse um trem passando direto na estação, e as personagem fossem os passageiros que veem esse trem passar, entre incrédulos e irritados; entre saudosos de quando o trem parava e felizes por ele ter passado direto. Não é sempre que se quer subir num trem, e os nazistas já nos provaram isso.
De “O fim do homem soviético e de sua autora vem um ensinamento que tem me atropelado: não adianta querer fazer justiça com eventos que nos escapam, seja pelo tempo que passou, seja porque já ninguém mais quer ler essas histórias. O melhor, parece, é contar e recontar a história dos que não foram iluminados pelas potentes lâmpadas da História, porque é nas sombras, sempre nas sombras, que a as histórias estão prontas para saltar para as páginas de um livro.
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Eu não assisti o filme, estou longe, num país onde ele não foi exibido. Li o livro, apenas. Quero colocar um questionamento: por que o Marcelo, vítima da ditadura, após perder o pai para a brutalidade, achou importante ressaltar esse detalhe no livro? O Marcelo não tem motivo para passar pano, né? E a Eunice? Por que ela tornou público esse detalhe? Se o Walter tivesse inventado a cena, eu concordaria com a crítica. Parece-me, no entanto, que os Paiva sempre fizeram questão de contá-la. Por quê?
ixe… de novo? o salles deixou a cena no filme porque aquela é a eunice. seria, aliás, panfletário, uma eunice que não mediasse com milico. cansei de ver entrevista com o marcelo falando de, depois de tudo, em cerimônia para receber alguma coisa relacionada ao rubens, eunice foi abraçada e abraçou de volta um milico de alta patente que, inclusive, se declarou feliz com o abraço dela depois pq bla bla bla pacificação bla bla bla olhar pra frente. a cena é, eu diria, necessária, para que a heroína não seja tomada pelo que ela não é.